Por Dominik Giusti
Os povos indígenas resistem em defesa de suas terras desde o domínio do colonizador europeu quando o Brasil foi “descoberto”, no século XVI, e tentam se organizar a partir de diferentes estratégias, não permanecendo indolentes à exploração física (pela servidão) e intelectual (pelo repasse de saberes tradicionais) à qual são submetidos. A vasta literatura em distintos campos do conhecimento apontam essa história de conflitos e barbaridades. A tese do Marco Temporal, retomada para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na quarta-feira (30), é parte dessa longa e cruel história.
Uma das formas mais eficazes de destituir os povos indígenas de seus direitos é por meio da subalternização, desqualificação e desvalorização de seus modos de vida e suas culturas – sobretudo quando comparadas ao “mundo civilizado” que a Europa representa. E começou lá mesmo, séculos atrás, a disseminação da ideia de povos indígenas como povos inferiores, a ponto de terem a própria subjetividade colocada em xeque: são selvagens como animais, pois assim vivem no meio das florestas.
Essa mensagem atravessou os tempos, persiste na sociedade como um todo. Prova disso, é que palavra “índio” reduz a uma única categoria uma diversidade de povos. O jornalista Nassif Jordy explicou bem: “é como se, em um só lance, reduzíssemos a comunidade europeia a apenas a cultura de um povo, o europeu”, fazendo, portanto, do alemão, francês e italiano um só povo, pois habitam terras próximas. Imagina, só! Todos nós sabemos que essas três nações, por exemplo, são bem distintas entre si – apesar de muito próximas territorialmente.
Segundo o Censo 2022 do IBGE, existem atualmente quase 1,7 milhão de pessoas indígenas no Brasil,, o que representa 0,83% da população. O dado foi divulgado em abril deste ano. Pesquisas do Instituto Socioambiental (ISA), ong que atua há quase 30 anos em defesa dos povos indígenas, estimam que na chegada das grandes navegações e antes da colonização por aqui viviam mais de mil povos indígenas, com algo entre 2 e 4 milhões de pessoas.
Pois bem, ao longo dos séculos, diversos instrumentos jurídicos tentaram dar conta da política indigenista, implementada desde o Brasil colônia com leis portuguesas; instrumentos que serviram de base para as futuras relações do já Estado brasileiro, após a independência, com os povos indígenas. A mudança para o reconhecimento da autonomia é fruto da luta dos povos pelos seus direitos foi se dando lenta e gradativamente.
O Serviço de Proteção dos Índios (SPI)
Uma marco importante ocorreu em 1908, quando Marechal Cândido Rondon propôs a criação de um órgão estatal para tratar das questões indígenas a partir das diretrizes: “a) estabelecer uma convivência pacífica com os índios; b) garantir a sobrevivência física dos povos indígenas; c) estimular os índios a adotarem gradualmente hábitos ‘civilizados’; d) influir ‘amistosamente’ na vida indígena; e) fixar o índio à terra; f) contribuir para o povoamento do interior do Brasil; g) possibilitar o acesso e a produção de bens econômicos nas terras dos índios; h) empregar a força de trabalho indígena no aumento da produtividade agrícola; i) fortalecer as iniciativas cívicas e o sentimento indígena de pertencer à nação brasileira”.
Assim foi criado, dois anos depois, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN, e a partir de 1918 apenas Serviço de Proteção aos Índios – SPI). A disputa por terra sempre deixou Estado, Igreja Católica e povos indígenas em guerra. A estratégia de acabar com culturas próprias e a subalternização foi uma forma de destituí-los do direito originário à terra e incorporar os povos indígenas à ideia de trabalhadores nacionais. E assim, permitir que a concentração de terras e o latifúndio se consolidasse no Brasil.
O SPI “agia transferindo índios e liberando territórios indígenas para colonização, enquanto reprimia práticas tradicionais e impunha uma pedagogia que alterava todo o sistema produtivo indígena”, descreve o antropólogo João Pacheco de Oliveira.
A Constituição Federal de 1988
Somente no século XX, com a Constituição Federal (CF) de 1988, após quase 500 anos de etnocídio e genocídio, o Estado passou a considerar a questão dos povos de forma diferente – ainda que haja profundos problemas na elaboração das políticas públicas voltadas aos indígenas e controvérsias quanto à manutenção dos direitos já conquistados.
Até 1988, quando da instauração da Constituição Federal vigente e que hoje serve de base para a política indigenista brasileira, as políticas públicas voltadas aos indígenas, até então, estavam principalmente alicerçadas na incorporação do índio como um “nacional” – princípio presente nas Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1969, e que deixava claro a ideia de “não-sujeito”. A Constituição de 1988 foi fruto de muita articulação e representou, enfim, o reconhecimento do índio enquanto sujeito e acabou com a perspectiva assimilacionista, aquela que queria o índio incorporado à “nação brasileira”.
O Marco Temporal hoje
A tese do Marco Temporal defende que povos indígenas só têm direito às terras com a condição de que já tenham sido ocupadas ou em disputa no dia 5 de outubro de 1988, quando a atual Constituição Federal foi promulgada. Como colocar essa condição se com conflitos violentos e com instrumentos do próprio Estado, os povos indígenas foram obrigados a sair de suas terras?
Então, a quem serve essa tese? Justamente aos latifundiários beneficiados durante séculos e séculos com as políticas agrárias e políticas anti povos indígenas no Brasil. A pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) voltou na quarta (30/08), após ter sido paralisada em junho, quando o ministro André Mendonça pediu mais tempo para analisar, e votou a favor da tese. Os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes já se posicionaram contrários à tese; Nunes Marques votou a favor. Esse julgamento começou em 2021.
Na corte, os ministros analisam a constitucionalidade da tese, a partir de um caso específico: o pedido de reintegração de posse de uma área reconhecida pela Funai como do povo Xokleng, em Santa Catarina. Se passar, o estrago será grande, pois outros processos poderão seguir esse mesmo rumo: o da violência histórica contra os povos originários.
O Marco Temporal também tramita no legislativo. Aprovada na Câmara dos Deputados enquanto PL 490, em maio, agora está no Senado como PL 2.903/2023, e com o mesmo argumento apresentado no processo no STF. Surgiu pela forte pressão dos ruralistas, sabemos bem, são os detentores das terras de onde os povos indígenas foram expulsos, tempos atrás. O plano de extermínio dos colonizadores segue em curso. E os Xokleng representam, tristemente, um exemplo de que o plano deu certo. Continuará dando?
Fontes:
LIMA, Antônio Carlos de Souza. O governo dos índios sob a gestão do SPI. 1992. IN: Cunha, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. p. 155-172. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP. Disponível eletronicamente em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local–files/hist%3Ap155-172/p155-172_Lima_O_governo_dos_indios_sob_a_gestao_do_SPI.pdf.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xokleng